Receitas médicas ilegíveis podem trazer riscos à saúde dos pacientes


Tentar entender letra de médico é tarefa semelhante a aprender um novo idioma - daqueles mais difíceis. Esse é um consenso não só entre pacientes, mas, sobremaneira, entre profissionais do ramo farmacêutico. Do Código de Ética Médica às Leis Municipais, Estaduais e Federais, há uma série de recomendações – e punições – quanto à legibilidade da caligrafia dos médicos. Mas um receituário ou prontuário escrito de forma legível ainda é raridade nos balcões de farmácias, drogarias e hospitais.

O balconista Adson Souza, empregado em uma farmácia do bairro São José, dá um exemplo prático do perigo que uma receita mal escrita pode trazer: um médico pode recomendar ao seu paciente diabético o remédio Daconil, mas se a letra dele não for legível é muito fácil que aquele medicamento seja confundido com o Dactil, cujo uso é indicado para casos de gravidez de risco. “Só quando perguntamos ao paciente o que ele está sentindo ou que doença ele tem, conseguimos diferenciar”, explica.


Muitas vezes, segundo Adson, é preciso até ligar para o médico numa tentativa de ‘traduzir’ o que está escrito. “O receituário é feito para o paciente. É ele quem vai tomar o remédio. Se nós, que trabalhamos no ramo, sentimos dificuldade, como a pessoa vai entender?”, questiona o atendente.

Quando o médico é da mesma região onde fica a farmácia, ele diz que acaba se adaptando. Mas se o médico não é da localidade, a história é outra. “A gente se recusa a vender o remédio, mas o paciente acaba indo em outra farmácia por desacreditar no que aconselhamos”, acrescenta.

Adson vê tal atitude como um mero descaso. Ele conta que também não é difícil chegarem receitas com posologia errada. “E até mesmo medicamentos que não servem para o problema de saúde que a pessoa apresenta”, alerta. O problema da escrita é mais freqüente entre pacientes das classes mais baixas.


Por outro lado, uma medida que vem se tornando prática recorrente entre alguns médicos é apontada como a melhor – e mais simples - alternativa ao problema. E para isso basta o uso de um computador e uma impressora. “As receitas mais legíveis que nos chegam são as impressas”, confirma Adson.

Riscos à Saúde

A coordenadora-adjunta do curso de Farmácia da Universidade Tirandentes (Unit), Ana Paula Belizário, diz que escrever de forma ilegível é um mau hábito geral dos médicos. Costume que se constitui num dos problemas mais graves da área de saúde no Brasil. “O uso incorreto de remédios é a maior causa de internações por intoxicação”, revela. “Em nível hospitalar, os prontuários ilegíveis também acabam por dificultar o trabalho das equipes de farmácia e enfermagem”, acrescenta.


Outro problema é a ausência de informações de suma importância no receituário, tais como o nome da substância, a posologia, o princípio ativo, a dosagem e a forma (líquido, comprimido, supositório). “É importante lembrar que a receita é um documento, uma comunicação entre o médico e o farmacêutico e qualquer incorreção põe a vida do paciente em risco”, alerta a professora.

Para ela, é imprescindível que o médico lembre-se que, ao assinar a receita e colocar o seu número de cadastro no Conselho Regional de Medicina (CRM), ele está firmando um compromisso com o paciente. “Isso tem conseqüência direta na vida do outro. É obrigação do profissional seguir a legislação”, diz. A pessoa que vai a uma consulta também pode exigir uma receita legível. “Se a escrita é ruim por uma questão pessoal, é preciso adotar um computador ou, no mínimo, uma máquina de escrever”, aconselha.

Legislação e Ética


O problema com a legibilidade das receitas médicas relaciona-se diretamente com a Ética Médica. Entretanto, por já existir uma tradição de que todo médico tem a letra feia é difícil que um trabalho de conscientização seja seguido à risca. O neurocirurgião dr. Alvino Dutra Silva, entretanto, desacredita que haja um descaso por parte dos profissionais. “Há uma série de variáveis que podem resultar numa má caligrafia: o número de tarefas, a rapidez no atendimento, a pressa. Mas é, sim, um problema sério”, reconhece.

Ele chama a atenção, inclusive, para o número leis municipais, estaduais e federais visando coibir tal prática. O próprio Código de Ética Médica, em seu artigo 39, trata do assunto advertindo que recai sobre a responsabilidade do médico 'Receitar ou testar de forma secreta ou ilegível, assim como assinar em branco folhas de receituários, laudos, atestados ou quaisquer outros documentos médicos'.




Em outros estados, cita Alvino, já há casos de médicos multados por conta da falha. “No Acre, onde há fiscalização, prevê-se uma multa de até R$ 10 mil”, conta ele. No Distrito Federal também há um dispositivo semelhante.

O médico explica, ainda, que esse papel fiscalizador, no caso de médicos que atendem pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS), cabe à Vigilância Sanitária. Mas ele lança uma sugestão às entidades de classe do Estado no sentido de promoverem um mecanismo semelhante ao de outros estados que vise coibir a prática. “Aqui não há iniciativas nesse modelo. Muitas vezes os problemas com a Saúde são maiores que isso e talvez não dêem tanta importância”, ressalta.